Cris Takuá: escola viva e os saberes indígenas invisíveis

Cris Takuá: escola viva e os saberes indígenas invisíveis

Saberes indígenas invisíveis e a escola viva: Como uma aranha, ela liga fios de saberes indígenas de diferentes territórios. Nesta conversa, fala do conceito de escola viva e a importância dos saberes invisíveis — ignorados pelo capitalismo e, consequentemente, pelo sistema educacional

A floresta está entre as principais mestras de Cristine Takuá, do povo Maxacali. Moradora da Terra Indígena Ribeirão Silveira, no litoral norte de São Paulo, é formada em filosofia pela Unesp e ainda em licenciatura — deu aula para jovens Guarani Mbya e Tupi-Guarani por 12 anos na escola estadual desse território. Por desgastes políticos, em 2021 sai da escola. 

Cocriadora do Fórum de Professores Indígenas do Estado de São Paulo (Fapisp), que conta com representantes dos povos em território paulista — Guarani Mbya, Tupi-Guarani, Terena, Kaingang e Krenak —, atuou incansavelmente pela garantia de mais um direito mínimo negado: licenciatura intercultural indígena, uma vez que segunda ela, quase 80% dos professores indígenas de SP possuem apenas a educação básica completa. 

Entre as suas missões atuais está a expansão da proposta de escola viva, conceito baseado em conversas com Dua Busë, liderança Huni Kuĩ, e que se transformou no programa Escolas Vivas, cuja equipe conta com contribuições de diferentes indígenas, entre eles, Ailton Krenak e que, segundo Cris, tem como coração central a editora Anna Dantes. Como coordenadora geral desse programa que atinge cinco territórios indígenas entre São Paulo, Minas Gerais, Acre e Amazonas, Cris Takuá busca reativar as memórias ancestrais, processo que chama de ‘acordamento’ de memórias ancestrais. Conheça mais sobre as Escolas Vivas: https://youtu.be/2QDpIOU-0vI 

Confira, a seguir, a entrevista exclusiva. 

Em março agora, depois de anos de luta, os povos de SP conquistaram uma licenciatura intercultural indígena. Fale sobre os descasos do estado — São Paulo só teve uma formação superior específica para indígenas, entre 2003 e 2008, — e o processo dessa conquista.  

Ao longo de décadas fomos percebendo a violência institucional da Secretaria de Educação para com o entendimento do que é uma educação específica, bilíngue, muitas vezes até trilíngue, comunitária, intercultural. Muitos gestores que estão à frente da Secretaria, mas também das diretorias de ensino que estão mais diretamente conectadas com as escolas, não têm esse entendimento, o que dificulta bastante. Essa violência ficou mais evidente durante a Conferência Estadual de Educação Escolar Indígena, em 2013 e que há 11 anos não acontece mais. Naquele momento, pensamos em criar alguma organização que pudesse juntar os professores para pensar e discutir, mas também para nos articularmos politicamente. Surge então, em 2015, o Fapisp (Fórum de Articulação dos Professores Indígenas do Estado de São Paulo), no qual atuei na concepção e nos processos de encaminhamento. Sempre esteve clara a necessidade da formação do professor, mas também da carreira e do currículo, que são os pilares que estruturam o entendimento e o funcionamento das escolas como um todo.  

Já em 2017, no Acampamento Terra Livre, em Brasília, durante um grupo de trabalho de educação, tomei conhecimento de que a educação escolar indígena de outras regiões, de certa forma, estava mais acelerada, no sentido de que alguns estados têm formação há mais de 10 anos, como Minas Gerais, Roraima e Mato Grosso do Sul. Nisso, fiquei sabendo que esses estados tinham a formação por meio do Prolind [Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas], vinculado à Secadi [Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão], do MEC. Nós, do Fapisp, descobrimos que nenhuma universidade de São Paulo tinha acessado esse edital. Foi então que começamos no final de 2017 uma saga de bater na porta da reitoria da USP, Unesp, Unicamp, UFSCar e a federal do ABC falando: precisamos de licenciatura, existe o edital via Prolind e queremos construir o nosso projeto político-pedagógico (PPP). 

Com apoio de entidades e muitas pessoas, o concluímos em 2019 e apresentamos o documento na sede do Ministério Público Federal (MPF) para a Secretaria de Educação de SP. Isso porque devido aos descasos e falta de diálogo aberto com a Secretaria, tivemos que acionar o MPF. Curiosamente, nenhum representante da Secretaria de Educação apareceu. Foi frustrante porque era um dos passos para a licenciatura se concretizar. Mas continuamos tentando negociar. 

E com as eleições presidenciais de 2018 a licenciatura fica ainda mais longe. 

Desde o golpe de 2016 já sentíamos o enfraquecimento das políticas públicas na área de educação tanto no governo federal quanto no estadual. Com a entrada do Bolsonaro no poder, essas políticas ficaram ainda mais abaladas, tanto que a Secadi, órgão responsável pela educação escolar indígena dentro do MEC, foi totalmente desmantelada financeiramente. Com isso, programas como o Prolind e Saberes Indígenas na Escola (produção de material didático) perderam seus recursos. Ou seja, voltamos à estaca zero. O sonho de acessar o Prolind acabou naquele momento e voltamos com o apoio do MPF para negociarmos com a Secretaria de Educação recursos via estado. Alegamos que o estado de SP tem a obrigação de ofertar formação para os professores indígenas; e andou um pouco.   

Em junho de 2021, as lideranças da Terra Indígena Jaraguá conseguiram reunião com o governador Doria e me convidaram para falar da licenciatura. Falei de educação e memória e a partir dessa luta surge o Museu das Culturas Indígenas — a estátua do Borba Gato havia sido queimada e eu refleti sobre a história que não é contada, falei de violência. Hoje o Museu também é uma grande escola em espaço de formação. 

Com a volta do governo Lula, conseguimos abrir diálogo com o MEC, até porque a Secadi é ativada e a Rosilene Tuxá, que fez licenciatura indígena, assume a coordenação do órgão. Nisso, abrimos diálogo para acessar o Prolind do MEC com a Unifesp, que sempre nos acolheu bem. O processo foi rápido e em março deste ano, finalmente iniciamos a primeira turma, com 40 estudantes da licenciatura intercultural daqui de São Paulo e todos vão produzir material didático por conta da ação Saberes Indígenas na Escola. A licenciatura aqui contempla os povos que estão em território: Guarani Mbya, Tupi-Guarani, Terena, Kaingang e Krenak. É uma questão de tempo para essa licenciatura trazer transformações aos territórios.  

O Fapisp e parceiros construíram um PPP diferenciado e que custou para ser aceito na Secretaria de Educação de SP. Perante os projetos convencionais, quais as principais diferenças/necessidades?  

Quando fechamos o convênio com a Unifesp, a universidade pegou o nosso PPP e o adequou para o que hoje chamam de projeto político-curricular (PPC), por conta da criação do curso, mas, claro, respeitando a essência do que construímos coletivamente. 

[Sobre os projetos convencionais], têm alguns diferenciais como o tempo de alternância, que a gente priorizou. O curso é organizado em dois tempos: o tempo na universidade que é integral e o tempo na comunidade para também pesquisar. A maioria dos professores já são das escolas, então retornam para continuar dando aula na aldeia. Diferentemente do aluno ir à universidade e ficar morando lá cinco anos, se desconectando de uma certa forma até energética-espiritual da comunidade, essa licenciatura prioriza muito o pé no chão da aldeia, o pé no chão da casa de reza, no diálogo constante com a comunidade.  

Outro conceito é a questão curricular. Quando a gente vê a organização das escolas, falam em grade curricular, que dá a sensação de algo preso, enquadrado, dividido, fragmentado. Ficamos pensando como sair dessa concepção tão ruim e até feia. Nos veio a palavra constelação curricular — olhar para o céu e enxergar aquela imensidão de conhecimento, pensar esse universo de saberes que está contido dentro das culturas que vão ser contempladas pela licenciatura, lembrando que no estado de São Paulo temos Terena, Kaingang, Krenak, Guarani Mybya, Tupi-Guarani e Nhandeva. Esse céu produz conhecimento e é o próprio chão da aldeia, a memória dos anciãos, das parteiras, do conhecimento das plantas, dos sonhos.  

Claro que ao levar isso à Secretaria surgiu estranhamento. Como assim constelação curricular? Do que estão falando? Mas seguimos firmando o que queremos e como queremos. No final, como o acordo foi feito com a Secadi por conta do Prolind, não precisamos de um aceite total da Secretaria de Educação porque ela não financia a licenciatura em nada. A única coisa que a Secretaria está fazendo é garantindo a liberação dos professores para não ficarem com falta na semana que eles vão ter curso, e até isso foi difícil.  

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Segundo Cris, a escola não ensina a respeitar o espírito das coisas porque ele é invisível, não está no livro. Sendo então descartado desse processo que chamam de educação (Foto: Carlos Papá)

O que é uma escola viva? 

Resumidamente, a minha percepção é a de que todo território indígena é uma escola viva, só que ao longo do processo de colonização, de interação com a sociedade, começaram as imposições. Podemos ir do tempo da catequese até os processos de ditadura militar. E é na chegada das escolas dentro das comunidades que se cria um afastamento dessa própria essência do que chamo de escola viva. Sempre existiu um modo próprio de transmitir, acessar conhecimento e sempre foi muito natural e próprio de cada cultura, cada território. Só que isso acabou sendo afetado por imposições como a do letramento e do tempo.

Sinto que as escolas atravessam o tempo natural das coisas. E pra mim a escola viva pulsa uma memória. Como essa memória foi afetada por essas diversas imposições que perpassam muitas camadas, desde a língua até o conhecimento de pegar um barro e transformá-lo em cerâmica, ir colher um algodão e transformá-lo num fio e tecer, muitas memórias deixaram de ser vividas. Saberes e fazeres que sempre foram muito ancestrais deixaram de ser praticados por conta dessa violência colonial que adentrou os territórios e atingiu essa memória.  

O que hoje venho falando e que está dentro dessa ação coletiva que sonhamos desenvolver é um processo de ‘acordamento’ das memórias, ativá-las novamente, despertar as consciências. Então se um dia todos os territórios indígenas eram escolas vivas, hoje precisamos criar uma teia, uma corrente energética e de pensamento para ativar de novo esse saber, esse modo próprio, porque muitos conhecimentos deixaram de ser praticados, da roça ao fazer o parto.

Onde foi que a gente perdeu o fio da meada desse processo natural de ser e estar no território de boa e bela maneira, que é como traduzo o bem viver, o teko porã [em guarani]? Então para ser e estar de boa e bela maneira no seu território, temos que ter o mínimo dos elementos para conseguir se constituir e dialogar com tudo o que nos rodeia, que é a floresta. Pra mim a escola viva está totalmente conectada à floresta viva, porque para praticar esse conhecimento tem que ter a floresta junto com você, já que é nela que estão os remedinhos e toda a possibilidade de desenvolver a sua arte, de acessar esse conhecimento.  

Como as escolas não indígenas podem implantar essa proposta viva? Você conhece alguma instituição fora das aldeias que já atue dessa forma?  

Já conheci algumas escolas não indígenas que possuem propostas pedagógicas que são diferentes dessas que se circulam nas escolas municipais e estaduais brasileiras. A maioria delas são particulares, dessa forma, o acesso fica reduzido. Não tenho muito conhecimento, mas sei que existem propostas diferentes e essa vontade também é muito latente, tanto que muita gente já me procurava antes mesmo de eu começar a falar das escolas vivas. Há um certo romantismo também na cabeça de alguns educadores não indígenas de achar que na aldeia as escolas são lindas e perfeitas.  

Precisamos nos despir desse pensamento colonial. Existe uma monocultura mental que paira na educação de uma maneira muito avassaladora. Devemos furar essa bolha para expandir e perceber que existe uma grande teia de conhecimentos que necessitam respeitar o dom de cada criança. Precisamos respeitar o sonho, o tempo, os processos próprios não só dos povos indígenas, porque temos escolas quilombolas, caiçaras, ciganas, pessoas de favela, de cidade. Existem ricos territórios educativos que são diferentes e carregados de memória que devem ser respeitados. Não tem como impor em um quadrado um currículo cujo material didático produzido é totalmente vazio de sentido.  

Houve muita violência no processo de transmissão de conhecimento, como o etnocídio, em que muitas culturas e memórias foram de certa forma capturadas. Então se hoje as escolas do Brasil querem respeitar e tornarem-se mais vivas, elas têm que começar a olhar para o seu próprio terreiro. Ao invés impor a língua inglesa dentro das escolas, por que não estudam tupi, nheengatu? Que as pessoas tenham conhecimento das línguas indígenas. Essa falta de referência do que está ao seu redor sempre me incomodou. 

Enquanto professora, quais atividades e materiais aplica com seus estudantes?  

No tempo que dava aula na escola estadual, gostava muito do cinema, do audiovisual, porque acredito que essa imagem em movimento aproxima as realidades. Há muitos cineastas indígenas produzindo imagens que trazem essas reflexões das suas realidades, da sua cultura, da sua filosofia. A literatura é algo que também contribui e hoje também temos um movimento grande da literatura indígena. Uma das coisas que mais me encanta e que tenho feito com o Papá [seu companheiro] é trazer essa contação de história e a partir dela produzir desenho.  

De modo geral, na escola sempre temos que escrever. Em algumas aulas que dava de filosofia, no lugar de ficar lendo e escrevendo, lendo escrevendo, desenvolvi um trabalho sobre as plantas e falava aos jovens: vamos desenhá-las. É preciso aflorar a criatividade e que a pessoa se permita enxergar o mundo colorido e as formas que existem dentro dessa linguagem dos desenhos, da arte em si. 

Você critica as escolas de modo geral por serem presas a números e letras. 

Sim. Há uma preocupação que reflete na imposição do currículo que é a mania de ser obrigado a alfabetizar aos oito anos. Nisso, a base de estrutura quando uma criança chega à escola é a letra e o número, a letra e o número. Ninguém chega e pergunta: o que que você sonhou hoje? Vamos transformar em um desenho seu sonho? Isso deveria ser considerado um processo importante do desenvolvimento cognitivo da criança. Só que não é. É totalmente esvaziado de sentido da nossa vida.  

Uma vez meu filho me perguntou o porquê de um cálculo matemático dar 1,3333. Comecei a falar do infinito. Se a matemática e a física falassem para as crianças do lado filosófico que está por de trás dos números seria muito mais interessante, porque nada mais reflete esse 1,3333 do que entender o que é o infinito, o que é o cosmos, o céu e toda essa dimensão, sendo que muitas vezes os professores de física e matemática ficam presos aos números e não trazem essa concepção que é tão bonita das realidades. Pedem para decorar a tabela periódica sem explicar que ela é a floresta viva, que os minerais são os seres sagrados. Falta encanto e que a essência do conhecimento das coisas se conecte.

O conhecimento físico e químico das linguagens está conectado. O conhecimento é uma teia de relações, só que tudo é dividido na escola. Muitas vezes, o professor de física nunca vai falar com o professor de arte, que não vai falar com o de filosofia porque acha que cada um é um quadradinho. Não. Temos que acabar com a monocultura mental e perceber que essa relação é muito saudável e enriquecedora também quando a gente conecta os conhecimentos. 

Por que é tão difícil a sociedade respeitar cosmovisões diversas?  

Essa pergunta é complexa no sentido de que existe um racismo epistemológico, que é escancarado, não é nem disfarçado. Isso ficou muito nítido pra mim quando estudei filosofia e percebi em história da arte, estética, que a base do entendimento do que é arte para o mundo é o conceito europeu. Então não há um respeito para as cosmovisões, para essas outras formas de ver o mundo, para outras epistemologias. Porque desde a colonização existe um pensamento muito enraizado no poder que insiste em querer inferiorizar o que logicamente não é enquadrado no sistema como o mundo ocidental quer enquadrar, que é a lógica do capital.  

As filosofias indígenas, essas outras formas de conceber a relação entre o cosmos, o mundo, a Terra, o visível e invisível, não se encaixam nesse quadrado epistemológico cartesiano. Essa é a questão. Então se hoje ainda existe um racismo do pensamento é porque as pessoas não se deram conta do que é estudar com as plantas, por exemplo. O tabaco é um grande professor, a chacrona é uma grande mestra de divisões. Contudo, se você não entende esses outros seres que não produzem livros, mas que te mostram uma realidade absurdamente transformadora, você não consegue entender porque as cosmosvisões indígenas falam da ciência da floresta.

Se os grandes rezadores e rezadoras são os detentores dessa ciência do invisível é porque eles conseguem dialogar com plantas, com os trovões, com as nuvens, com o silêncio, decifram sonhos. O Papá chama isso de códigos da floresta, que são ferramentas muito importantes no processo do aprendizado de criancinha até a vida adulta.

Tudo o que existe ao nosso redor possui um espírito, um guardião. Cada povo chama de um jeito. Os Guarani chamam de ija, os Maxacali de yamiyxop, os Yanomami chamam de xapiri, os Hunin Kuĩ de yuxibu. Então esses seres-espíritos como a folha, a pedra, a água e a terra precisam de respeito. Só que a escola não ensina a respeitar o espírito das coisas porque ele é invisível, não está no livro. Como não está perceptível aos olhos da humanidade ele foi descartado desse processo que chamam de educação. Então vejo que o grande fato de as cosmovisões indígenas não serem respeitadas é o de ignorarem essa essência primeira de tudo, que são o espíritos-guardiões de tudo que habita essa Terra. 

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Fato Novo com informações: Revista Educação

Geraldo Naves

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