‘Guerra Civil’: o filme estrelado por Wagner Moura que alerta sobre polarização política
A cena mais angustiante e visceral entre as muitas do filme Guerra Civil – que estreia nesta quinta (18/4) nos cinemas brasileiros – acontece nas ruas de Washington DC, nos Estados Unidos, que se tornaram uma zona de combate
Em um futuro muito próximo, quando Estados separatistas se rebelam contra um governo autoritário nos EUA, helicópteros sobrevoam a capital americana e explosões atingem o monumento Lincoln Memorial.
Perto da Casa Branca, jornalistas escondem-se dos tiros atrás de veículos militares blindados.
O diretor do filme, Alex Garland, nos coloca no centro de uma batalha de revirar o estômago e que parece muito real, especialmente à luz da violência no ataque ao Capitólio dos EUA em 6 de janeiro de 2021.
Lee, uma famosa fotojornalista (interpretada por Kirsten Dunst), começa o filme já parecendo exausta de cobrir conflitos brutais.
Ela e o repórter Joel (Wagner Moura) têm a expectativa de conseguir entrevistar o presidente (Nick Offerman), que dissolveu o FBI (a polícia federal americana) e ordenou que os militares atacassem cidadãos comuns.
Em resposta ao seu regime, os Estados rebeldes formaram diferentes alianças, incluindo a improvável parceria Texas-Califórnia nas chamadas Forças Ocidentais.
À medida que os repórteres viajam pelo país devastado pela guerra, de Nova York a Washington, o argumento de Garland fica claro.
Um jovem em um posto de gasolina mostra orgulhosamente a Lee os corpos ensanguentados e contorcidos de dois homens que ele pendurou pelos pulsos.
“Fui para o ensino médio com ele”, diz ele, apontando para um homem. “Ele não falava muito comigo.”
Homens com equipamento de combate sem identificação disparam contra outros atiradores em uma casa de fazenda.
“Alguém está tentando nos matar. Estamos tentando matá-los”, diz um deles a Joel, que pergunta incrédulo: “E você não sabe de que lado eles estão lutando?”
Atirar no outro lado porque é o outro, matar por xenofobia ou simplesmente por despeito – esse é o perigo que Guerra Civil retrata.
Garland fez um filme de guerra que é antiguerra, um filme político determinado a ser apartidário. Acima de tudo, é um alerta assustador e crível para os EUA e, por extensão, para todos os países.
“É um filme sobre o produto da polarização e da divisão”, disse Garland à rede de televisão CBS. “A menos que recuperemos o bom senso, nossa situação polarizada, divisiva e não comunicativa continuará”.
Para transmitir essa mensagem, Garland cria uma eficaz linha de gerações – que talvez seja até organizada demais.
Sammy (Stephen McKinley Henderson) ocupa o lugar de um sábio repórter mais velho, que avisa Lee e Joel que combatentes estão atirando em jornalistas à primeira vista na capital.
“Eles nos consideram soldados inimigos”, diz ele.
Mesmo assim, ele se junta à dupla na viagem em direção a Washington, na esperança de uma última tentativa de fazer uma cobertura.
Jessie (Cailee Spaeny), uma jovem e talentosa aspirante a fotojornalista que idolatra Lee, também entra no carro, juntando-se à jornada cada vez mais perigosa.
Garland torna o futuro pelo qual eles viajam especialmente perturbador e verossímil, porque consegue combinar com grande habilidade o que é familiar e o que é estranho.
Manifestantes nas ruas de Nova York enfrentando a polícia local são uma cena reconhecível – até que os manifestantes são alvejados pelos militares dos EUA.
A van branca de Lee e de Joel com “imprensa” escrito na lateral é algo rotineiramente visto por telespectadores norte-americanos em reportagens sobre guerras no exterior.
E não pode ser coincidência que uma cena se passe numa base militar das Forças Ocidentais em Charlottesville, Virgínia, local onde supremacistas brancos fizeram uma manifestação violenta em 2017. O próprio nome da cidade agora remete à divisões políticas.
Garland escreveu Guerra Civil em 2020 e reconheceu, no programa de televisão americano The Daily Show e em outras entrevistas, que a violência da cena que se passa em Washington repercute de outra forma após os acontecimentos de 6 de janeiro de 2021.
Na mesma entrevista ao Daily Show, no entanto, ele enfatizou que o filme não é inteiramente sobre os EUA – que a polarização e o fato das pessoas ignorarem os jornalistas que apontam a verdade são coisas que estão acontecendo no “seu país [EUA], no meu país [Reino Unido], em muitos outros países”.
Guerra Civil parece não apenas falar de perigos sociais tão profundos, mas também antecipá-los, como os filmes de Garland costumam fazer.
Seu roteiro do filme Extermínio (2002), do diretor Danny Boyle, imaginou uma praga global anos antes da pandemia de covid. No filme, a infecção transforma as pessoas em zumbis, mas ainda assim foi um aviso.
Há uma década, no elegante Ex Machina, que Garland escreveu e dirigiu, ele tratou da linha tênue entre a inteligência artificial e os seres sencientes, aproveitando para fazer uma crítica aos bilionários da tecnologia.
Ex Machina é seu filme mais bem concretizado e se mantém atual. Garland rejeitou a ideia de que ele seja “premonitório”, e disse que está apenas observando o mundo.
Agora ele observa a polarização, e o mundo parece pronto para provar o seu ponto de vista.
O próprio filme Guerra Civil começou a gerar fortes reações políticas antes que qualquer pessoa do público sequer visse o filme, refletindo o tipo de divisão que Garland descreve de forma tão explosiva. A conversa em torno da produção é quase tão reveladora quanto o que está na tela.
O que a reação ao filme mostra
Um dos primeiros artigos sobre o filme abordou a possibilidade de que o longa, até então não visto pelo público, pudesse incitar a violência, algo citado em fóruns online de esquerda.
Outro artigo afirma que o filme inspirou teorias da conspiração da direita as quais defendem que o filme refletiria um “plano da vida real” de poderosos para “criar desordem”.
A antecipação lembra o episódio em que foram levantados temores de que o filme Coringa (2019) inspiraria pessoas tentando imitar a violência – o que nunca aconteceu.
Mas esta reação polarizada indica que o filme oportuno de Garland realmente atingiu um ponto sensível.
Após a estreia do filme em um dos festivais do South by Southwest (SXSW) em março, Garland e o elenco começaram a dar entrevistas, enfatizando uma postura apartidária, mas nem sempre sendo esclarecedores.
Garland tentou explicar a aliança desconcertante entre os Estados do Texas, de tendência conservadora, e da Califórnia, de tendência progressista – o que não é feito no filme.
“Dois lados que têm posições políticas diferentes disseram: ‘Nossas diferenças políticas são menos importantes do que isso’ [resistir a um presidente fascista]”, disse ele à revista Hollywood Reporter.
Depois de dar uma resposta semelhante ao jornal Financial Times, ele acrescentou que isso seria lógico.
“Para mim, esse é um passo tão pequeno e lógico, mas é interessante que as pessoas o considerem tão problemático”, afirmou.
Na melhor das hipóteses, porém, o conceito dessa aliança é extremamente idealista, e idealismo não é o que o filme passa. O quase-realismo é o seu ponto forte, e mostrar uma colaboração tão improvável não contribui para reforçar essa qualidade.
Algumas sondagens recentes sugerem que os americanos estão unidos nas suas crenças nos valores fundamentais da democracia. No entanto, um estudo realizado pelo centro de pesquisas Carnegie Endowment vai além disso.
“Mesmo que os americanos não sejam tão polarizados ideologicamente como acreditam ser, eles são emocionalmente polarizados (conhecido como polarização afetiva)”, alerta o estudo.
“Em outras palavras, eles não gostam de membros de outro partido.”
Neste exemplo notável, Garland não se ajuda ao evitar lidar com o fato de que a animosidade entre democratas e republicanos parece estar na raiz da divisão nos EUA.
Em entrevistas, os atores não fugiram do script.
Questionado se seu personagem era baseado em Donald Trump, Offerman disse que não, que o personagem é “descolado de qualquer coisa na política moderna”.
Ele está certo, na medida em que o presidente fictício do filme não se parece nem soa como nenhuma pessoa específica da vida real.
Já Wagner Moura afirmou que o filme “não tem agenda política”.
“Realmente, não se pode dizer que este é um filme progressista ou conservador”, disse ele.
Comentários semelhantes, todos verdadeiros, continuam sendo feitos em várias entrevistas com o elenco, reforçando a recusa do filme em tomar partido.
Mas o próprio Garland disse que o filme é político, inclusive durante evento com perguntas e respostas após uma exibição em Nova York esta semana.
Ele disse categoricamente que estava ficando irritado porque tantos jornalistas disseram que o filme não é político.
“É um filme intensamente político”, disse ele, afirmando que, no entanto, o filme não é didático, não explica as coisas, só fornece “pontos que podem ser ligados” de acordo com opiniões políticas individuais.
“Este presidente [fictício] é um fascista”, disse ele, acrescentando que não sabia quantas pistas a mais ele teria que dar.
O que parece político para Garland claramente não o parece para alguns dos seus críticos, especialmente aqueles que esperavam e talvez quisessem comentários mais contundentes.
Mas talvez esses espectadores queiram, na verdade, que Guerra Civil seja um outro filme, em vez do alerta devastadoramente real que é.
O roteiro pode ter sido escrito há quatro anos, mas o longa chega agora em meio a uma corrida presidencial acirrada nos EUA, o que parece o momento perfeito para uma produção que se dirige de forma tão poderosa a um país dividido – mesmo que os espectadores tenham que “ligar os pontos” eles próprios.