Intoxicação digital e o papel da escola, segundo Augusto Cury
O psiquiatra alerta que “estamos na era do adoecimento psíquico”
Os dispositivos digitais fazem hoje parte do tecido social e não é possível afastar completamente as crianças e adolescentes deles, diz o psiquiatra Augusto Cury, celebrado autor e palestrante, com obras lançadas em mais de 70 países. Mas aceitar que as telas entrem de alguma forma na rotina dos mais novos não implica abrir mão de limitar e regular o acesso a elas. Os adultos têm sim um papel primordial para evitar o que Cury chama de intoxicação digital.
“Estamos na era do adoecimento psíquico”, alerta o médico. “Uma em cada duas pessoas vai desenvolver um transtorno psiquiátrico ao longo da vida. É metade da população mundial. Estamos falando de metade do corpo discente e também do corpo docente de cada escola”, diz.
Essa realidade pode parecer ainda mais assustadora quando se tem em conta as consequências irreversíveis de tanto adoecimento. Segundo estudo da Sociedade Brasileira de Pediatria, com dados do Ministério da Saúde, o suicídio de pessoas de 10 a 19 anos cresceu 47% entre 2016 e 2021. Por dia, três crianças e adolescentes tiram sua própria vida.
Para Augusto Cury, não há dúvidas da relação entre o excesso de telas e o adoecimento psíquico. “A intoxicação digital é mesmo uma síndrome, com sintomas que eu descrevo, como a aversão ao tédio e à solidão”, afirma. Longe de serem problemas, tédio e solidão são essenciais para uma mente saudável, pois permitem que as pessoas “ouçam a voz do seu pensamento”.
Dados mundiais também indicam uma correlação entre o uso de aparelhos digitais portáteis e a piora da saúde mental dos mais novos. Foi a partir de 2010, quando os smartphones se popularizaram entre jovens, que os números de suicídio entre eles pioraram.
Antes, as taxas eram estáveis. E mesmo o aprendizado de conteúdos escolares acabou prejudicado. As notas em matemática, leitura e ciências do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) despencaram globalmente desde 2010.
Alertas para as escolas de Augusto Cury
Um dos problemas dos celulares em relação a outras telas é que ele está o tempo todo ao alcance das mãos. Os adolescentes dos Estados Unidos passam sete horas por dia usando seus aparelhos e recebem, em média, 237 notificações diárias. Embora não haja dados semelhantes sobre o tempo de uso no Brasil, a referência estadunidense não parece muito longe da realidade local.
Sem dar espaço ou tempo para que as crianças fiquem entediadas, os estímulos constantes do mundo digital acabam criando algo que Augusto Cury chama de “mendigos emocionais”. “Mendigo emocional é aquela pessoa que precisa de muitos estímulos para sentir migalhas de prazer”, explica o médico. Dessa forma, vive-se com uma sensação de insatisfação crônica.
O panorama atual ruim não deve, contudo, desanimar. Ao contrário, deve despertar nos adultos um senso de responsabilidade com o futuro e fazer com que se mude a forma de mediar a relação dos mais novos com seus aparelhos. “Não adiantam medidas paliativas; temos que fazer uma verdadeira cirurgia”, defende Cury.
Na escola, essa cirurgia significa tirar todo o foco conteudista e a abordagem cartesiana do conhecimento e implantar no lugar deles uma visão de formar seres humanos capazes de gerenciar suas próprias emoções. “A escola e os professores devem mostrar aos alunos como eles podem ser os gestores de suas emoções. Para isso, o professor tem que celebrar os acertos, tem que ser um elogiador provocador”, diz.
Apesar de não serem as escolas as grandes responsáveis pelo adoecimento coletivo da humanidade, a postura conteudista das instituições de ensino frente ao desafio acaba contribuindo para agravar o problema. A polarização e radicalização que se vê ao redor do planeta é uma das consequências dessa escola que aliena do outro em vez de humanizar, defende.
“As crianças no estão desenvolvendo habilidades socioemocionais como a compaixão. Há uma dificuldade de as pessoas reconhecerem que mesmo os que pensam diferente de mim são seres humanos iguais a mim”, afirma Augusto Cury.
Dois pontos essenciais que todos os adultos devem cuidar, sejam pais ou professores, é estabelecer limites de tempo e fazer curadoria de conteúdos. Segundo o médico, deve-se evitar tanto videogames violentos que estimulam a lógica ‘bateu, levou’, porque jogá-los em demasia pode gerar padrões de comportamento semelhantes, como grande parte dos influenciadores digitais. “Os influencers mostram uma felicidade artificial e um sucesso irreal. Felicidade não é sempre alegria; ela tem seus invernos, suas crises, estresses e períodos de vazio”, explica.
E, claro, existem ainda mecanismos mentais para combater a intoxicação digital. Uma das técnicas de Cury é a da paz inegociável. “Minha paz é inegociável: não posso perdê-la se alguém me rejeitou, me xingou, me cancelou”, conta o psiquiatra. Ele também costuma ensinar uma que chama de “mesa redonda do eu”, na qual o “eu” se confronta com seus fantasmas mentais e enfrenta-os.
Fato Novo com informações: Revista Educação