Manejo integrado do fogo: o poder da queima como aliada para a saúde do Cerrado
Ainda que queimadas sejam um sinal da ocupação ilegal de terras, o fogo controlado pode ser uma arma importante para a dinâmica do Cerrado. Entenda como na coluna da TNC Brasil
As queimadas e incêndios florestais são assunto recorrente durante os meses de seca no Brasil. A combinação de redução das chuvas com o aumento da secura na vegetação desafia diversas regiões brasileiras no enfrentamento ao fogo, que muitas vezes ocorre de maneira descontrolada e destrutiva. Por isso, a percepção predominante é a de que as chamas devem ser combatidas a todo custo, principalmente devido ao seu poder devastador.
No entanto, essa visão ignora o papel benéfico que o fogo pode desempenhar em diversos ecossistemas. Em alguns contextos, as chamas podem, atuar como aliadas da vegetação, da biodiversidade e dos processos ecológicos naturais. Para identificar quando o fogo é benéfico, é essencial considerar o tipo de vegetação, o momento e as condições das chamas, sem esquecer de analisar o histórico de incêndios, referentes ao fogo não planejado, na área. Felizmente, temos várias ferramentas à disposição para isso.
Há um consenso científico de que o fogo foi um agente natural na evolução de certos ecossistemas, onde sua presença é mais do que possível. É desejável. A União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) propôs uma classificação global dos ecossistemas, identificando alguns como “pirogênicos”, ou seja, naturalmente adaptados e propensos ao fogo de forma benéfica.
No Brasil, o Cerrado é o exemplo mais emblemático. Registros de carvão na região datam de mais de 4 mil anos, evidenciando a presença antiga desse elemento. Muitas plantas do bioma se adaptaram para sobreviver e até depender do fogo para manter seus processos naturais. O calor de um fogo moderado pode ajudar na abertura de frutos de espécies como o ‘pau-santo’. Além disso, após o fogo muitas espécies florescem, algumas apenas 24 horas após a passagem do fogo, como o ‘capim-cabelo-de-índio’. Diferentemente da Floresta Amazônica e da Mata Atlântica, que não possuem adaptações às chamas e são altamente vulneráveis, o Cerrado possui organismos que convivem bem com o fogo.
Contudo, isso não significa que todo fogo no Cerrado seja benéfico. Sua intensidade e impactos variam de acordo com sua frequência e o intervalo entre ocorrências. O conceito de “regime de fogo” é crucial para avaliar esses aspectos, abrangendo uma análise histórica da frequência, intensidade e extensão dos incêndios em uma área. A partir dessa compreensão, é possível gerenciar adequadamente o fogo nesse bioma, que pode ter origem natural ou resultar de ação humana.
Assim, o entendimento quanto ao impacto do fogo no Cerrado passa pelo acesso à informação, algo que há algumas décadas nos soava como um verdadeiro desafio, mas que foi superado com apoio de tecnologias que nos fornecem detalhamento e indicadores das ocorrências. As informações, antes baseadas em medidas dos anéis de crescimento das árvores, uma técnica pouco utilizada em ambientes tropicais, agora são baseadas em dados espaciais via monitoramento remoto, tornando possível mapear com precisão tanto os focos de calor quanto as cicatrizes de queimadas que atingiram a vegetação durante um determinado ano.
O MapBiomas Fogo vem desenvolvendo, desde 1985, o monitoramento detalhado de ocorrências de fogo no Brasil. Dados recentes da plataforma identificaram que 43% da vegetação do Cerrado não registrou cicatrizes de chamas nesse período. Esse percentual chama a atenção, especialmente se considerarmos que, há 40 anos, um ambiente historicamente dependente do fogo está sem queimar.
Assim como o fogo ‘de menos’ pode trazer problemas para a vegetação do Cerrado, fogo demais também não é uma boa estratégia. Por isso, equilibrar a frequência e a intensidade das queimadas é essencial. As chamas são uma ferramenta poderosa, porém seu uso deve ser cuidadosamente gerenciado para evitar impactos negativos excessivos. Quando aplicado corretamente, o fogo pode contribuir para a saúde e a resiliência do Cerrado, mantendo a biodiversidade e os processos naturais em equilíbrio.
Mas como atuar diante de tanta complexidade? A resposta está em fazer com que o fogo jogue a favor dos ecossistemas. Para isso, uma abordagem efetiva é o que chamamos de Manejo Integrado do Fogo (MIF), um plano de ações que tem características ecológicas e culturais do uso do fogo de forma a reduzir a ocorrência do fogo catastrófico. Há alguns anos, o MIF é alvo de debates no Brasil e sua implementação tem sido gradativa. Em outros países, essa abordagem já é uma realidade há muitos anos, como Estados Unidos e Austrália, e a TNC é uma das instituições que lidera a queima controlada em áreas naturais para restauração da biodiversidade.
Essa mudança na forma de entender e lidar com o fogo vai muito além de impactar positivamente a biodiversidade e serviços ambientais. O investimento para executar o MIF é muito inferior proporcionalmente ao custo para combater incêndios florestais. Se bem planejado e adequadamente desenvolvido, ao longo do tempo o modelo pode reduzir significativamente os riscos de queimadas e incêndios. É com base nesta perspectiva extremamente vantajosa que vários representantes do governo e poder legislativo já têm se engajado para tornar Manejo Integrado do Fogo uma realidade em nosso país, contribuindo para manter a saúde e a diversidade de ambientes naturais.
Fato Novo com informações: TNC, Revista Galileu