Maria da Conceição deixa um legado de luta por justiça social
Economista marcou a história do país por sua busca incansável pela igualdade. A intelectual influenciou gerações, formou economistas e deixou sua contribuição para a sociedade brasileira. Amigos e autoridades lamentaram a morte
Intelectual, revolucionária e educadora. Faltam adjetivos para descrever o legado da economista Maria da Conceição Tavares, que morreu, ontem, aos 94 anos, em Nova Friburgo, região serrana do Rio de Janeiro. Ela deixou dois filhos, dois netos e um bisneto. A notícia abalou não apenas a família e os amigos, mas também autoridades, políticos, ex-alunos e outras pessoas que tiveram a honra de conviver com a mulher que priorizou a justiça social no Brasil.
A premiada economista, matemática e escritora filiou-se ao Partido dos Trabalhadores em 1994 e influenciou uma série de outros economistas e políticos. Entre os destaques, estão a ex-presidente da República Dilma Rousseff e o ex-ministro tucano José Serra. Sua sabedoria e vocação para ensinar marcou a trajetória dos alunos no período em que foi professora na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Também foram seus alunos Fernando Henrique Cardoso, Guido Mantega, Pedro Malan, Luciano Coutinho, João Manuel Cardoso de Melo, Carlos Lessa, Luís Gonzaga Beluzzo, José Luis Fiori e Aloizio Mercadante.
Com um perfil progressista e desenvolvimentista, era forte defensora da atuação do Estado como impulsionadora do bem-estar social e da promoção econômica. Foi uma das principais opositoras ao Plano Real, durante a gestão do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. Não se intimidou e se envolveu em diversas críticas durante a presidência do tucano, nos anos seguintes.
Na mesma eleição em que FHC se tornou presidente, Maria da Conceição Tavares foi eleita deputada federal pelo PT do Rio de Janeiro. Neste cargo, permaneceu durante quatro anos (1995-1999). Ela ainda exerceu a função de consultora no Ministério do Planejamento e trabalhou no Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) — e foi homenageada neste ano pelo presidente Aloizio Mercadante, durante a celebração do Dia Internacional da Mulher.
Opiniões fortes
De voz grossa e tom enérgico, a intelectual foi uma das principais responsáveis pela difusão do pensamento desenvolvimentista no país durante o final do século 20, com a publicação de diversos livros e artigos, durante os anos 1980 e 1990. O mais famoso deles foi a obra Auge e Declínio do Processo de Substituição de Importações no Brasil – Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro, de 1972, que, segundo a Universidade de São Paulo (USP), tornou-se um “clássico na literatura especializada”.
Em sua famosa participação no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1995, a então deputada recém-empossada criticou a distribuição de renda no país e afirmou que o país estava regredindo socialmente. Até os os dias de hoje, o vídeo repercute com suas falas. “Quantas vezes a massa desse país já foi às ruas? Quanta coragem vocês querem que esse povo tenha? Tem que ter uma coragem infinita”, disse na ocasião.
Tema recorrente na atualidade, a reforma tributária era alvo de críticas da economista há quase trinta anos: “Quem paga (impostos) somos nós. Os 400 maiores ricos do país não pagam nada. Porque tem fundação, porque reduz para isso, reduz para aquilo. É uma vergonha. Isto não é nada constitucional. O problema é infraconstitucional. Não precisa fazer nenhuma reforma, já está dito na Constituição, e não é feito nada”, disse Maria Conceição no Roda Viva.
Mente brilhante e inquietante
ersas lideranças políticas endossaramo luto pela economista. O presidenteLuiz Inácio Lula da Silva destacou atrajetória da antiga colega de partido.Segundo ele, Maria da Conceição Tavares nunca se esqueceu da políticae da defesa de um “desenvolvimentoeconômico com justiça social”.
“Até hoje, suas aulas são consultadas pelos jovens em vídeos na internet, pela sua fala sempre franca e direta. Tive o prazer e a honra de conviver econversar muito com minha amiga aolongo dos anos, debatendo o Brasil e osnossos desafios sociais e econômicosno Instituto Cidadania, em conversasno Rio de Janeiro ou em viagens peloBrasil”, disse o petista via redes sociais.Outros antigos chefes do Poder Executivo, também manifestaram condolências. O ex-presidente José Sarneyafirmou que a economista deixa nahistória da economia brasileira uma“marca muito especial, de pioneirismo e audácia”.
“Ela foi a inspiração e oeixo dos que souberam romper a barreira da ortodoxia econômica e propor um desenvolvimento voltado para o ser humano. Nascida em Portugal,poucos amaram o Brasil como ela. Tivemos uma obsessão em comum: a dabusca da justiça social, que deve ser oobjetivo de toda vida política”, disse.A ex-presidente Dilma Rouseff, quecontou com o apoio dela durante aseleições de 2010, se disse abalada coma notícia.
“Uma das mais importantes e influentes intelectuais de nossotempo, Maria da Conceição amou profundamente o Brasil e o povo brasileiro, tendo sido uma das grandes pensadoras sobre o destino do país, os rumos da nossa economia e os caminhospara o desenvolvimento com JustiçaSocial”, escreveu.
Colega de trabalho e amigo durante décadas, o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, escreveu uma notaem que conta que recebeu com “profunda tristeza” a notícia da morte. Ele ressaltou o legado de Maria da Conceição para o Brasil.“Com densa formação intelectuale profunda coragem, Conceição teve uma vida de compromissos com ademocracia, com o desenvolvimento, com a distribuição de renda, coma justiça social e com o enfrentamento do neoliberalismo”, destacou.
“Debatedora perspicaz, contundente ede formação heterodoxa, defendeuem sua vasta obra que a economia éum instrumento para melhorar socialmente e politicamente uma nação”, apontou.O ministro da Fazenda, FernandoHaddad, ressaltou a importância deMaria da Conceição. “Deixa um rico legado. Seu pensamento, sua crítica e suadefesa inegociável da justiça social será sempre uma estrela guia para o pensamento econômico brasileiro”, disse.
Marcou a história
A economista nasceu em Anadia, no distrito de Aveiro, em Portugal, ecresceu na capital Lisboa, local em queviveu durante mais de 20 anos. Era filha de um pai anarquista que abrigavarefugiados nos anos da Guerra Civil Espanhola, durante o regime de Antônio Salazar.
Formada em matemática pela Universidade de Lisboa, fugiu da ditadura salazarista em Portugal, e mudou-se para o Brasil em 1954.
Outras autoridades também manifestaram pesar: Rui Costa (Casa Civil), Esther Dweck (gestão), Silvio Almeida (Direitos Humanos), Jean Paul Prates, aprimeira-dama Janja e parlamentares. Quando chegou no país, ingressou em atividades e debates conduzidospela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Por não conseguir a equivalência de diplomas quelhe permitiria dar aulas em universidades, em 1955, começou a trabalhar noatual Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).Formou-se em Economia pela UFRJ,em 1960. Durante o período da ditaduramilitar no Brasil, se exilou no Chile, ondetambém atuou como professora. De volta ao país, durante a redemocratização, foi militante do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) — o único partidode oposição da época. Foi eleita deputada, em 1994, pelo PT.
Com relevância política incontestável, Conceição Tavares também ganhou a admiração e respeito de seusalunos na universidade. Recentemente, vídeos da professora dando lecionando na Unicamp viralizaram nasplataformas digitais. Em uma entrevista para a TV Senado, nos anos 2000,ela deu um recado aos jovens que seinteressam pelo estudo da economia.
“Não vale a pena ser economista sevocê não achar que possa dar algumacontribuição, com tua profissão, com teuesforço, com teu talento, para o desenvolvimento deste país. E se você não pensar no povo brasileiro, é melhor seguirem frente. Vai ser regente de obra”, disse.
Um dos milhares de alunos de Maria da Conceição foi o professor Francisco Lopreato, autor de livros comoCaminhos da Política Fiscal do Brasil.Ela a classificou como um “furacão” nasala de aula. “Para quem não conhecia, ela aparentava ser agressiva, mas,ao mesmo tempo, era uma pessoa extremamente dócil. Era muito atenciosacom os amigos e alunos e não deixavaninguém que estivesse ao seu redor serindiferente”, contou ao Correio.
A causa da morte de Maria da Conceição não foi informada. Lopreatoconta que as aulas eram dinâmicas eabrangentes, com noções de outrasmatérias como história e matemática.“Vários professores marcam a vida dealguns alunos. Ela foi capaz de marcaruma geração inteira”, completou.
Fato Novo com informações: Correio Braziliense